Você já parou para pensar em quantas histórias, que começaram como puro entretenimento, acabaram provocando reflexões mais profundas?
Esse é o papel da boa ficção. Raramente se limita a entreter. Quando bem construída, ela se torna uma poderosa ferramenta de reflexão e empatia. Escancara dilemas sociais que muitas vezes ignoramos, nos deixando com a sensação de que precisamos fazer algo. Como autora de ficção policial, sempre tive interesse em conduzir minhas histórias para além do mistério, utilizando os crimes como ponto de partida para abrir diálogos sobre temas relevantes — mesmo quando estão inseridos em tramas cheias de tensão e suspense.
Foi o burburinho das últimas semanas que me trouxe até esta edição da Evidenciando — um convite para olharmos para a literatura e o audiovisual sob um novo ângulo: o de agentes de mudança social.
Bastou abrir o Twitter ou Instagram no dia 14 de março (dia seguinte à estreia) para perceber o impacto que a série Adolescência teria no mundo. Produzida pela Netflix, a série retrata os dilemas emocionais, familiares e sociais de adolescentes em uma sociedade acelerada, pressionada por aparências e esvaziada de vínculos profundos.
O que começou como “apenas mais uma série sobre dilemas de adolescentes” extrapolou os limites da ficção e se espalhou pelos consultórios médicos, rodas de conversa e artigos especializados. Psiquiatras, pedagogos e psicólogos se manifestaram. A obra virou pretexto para que pais e educadores repensassem a forma como escutam (ou ignoram) seus filhos e alunos.
O poder de uma boa ficção começa com a inquietação do criador, ao observar situações cotidianas que perturbam e fazem parar para refletir. No caso de Adolescência, Stephen Graham revelou, em diversas entrevistas, que sua motivação para escrever a história veio de duas notícias de jornais sobre ataques fatais cometidos por meninos de 13 anos em escolas diferentes do Reino Unido.
Desde que comecei a escrever ficção policial, tenho convicção de que o gênero vai muito além de descobrir "quem matou". O crime é apenas um gatilho narrativo. O que me interessa de verdade é explorar o que há por trás: a violência silenciosa, a injustiça institucional, o preconceito estrutural.
Com motivações parecidas às de Graham, nasceram algumas das minhas histórias. O gatilho para que eu escrevesse Vestígios (2020) foi o ataque com ácido sofrido pela modelo Natalia Ponce de León, em Bogotá, em março de 2014. Já o impulso para Aquilo que Nunca Soube (2023) veio da dor vivida por uma pessoa próxima, vítima de alienação parental.
Adolescência, Vestígios, Aquilo que Nunca Soube — e tantas outras histórias — nasceram de lugares de indignação, e foram transformadas em narrativas com o objetivo de tocar. A ficção que brilha é aquela que escancara a realidade com a força da arte.
Em outubro de 2023, escrevi uma edição da Evidenciando sobre o episódio 20 da segunda temporada da série The Resident. Nele, a história de uma mulher negra cujo pós-parto é negligenciado por um médico branco me impactou como mulher, mãe e autora. O episódio, inspirado no caso real de Kira Dixon Johnson, escancarou com potência o racismo estrutural presente no sistema de saúde americano. Essa foi, inclusive, a edição mais lida da newsletter no ano passado — o que talvez explique o quanto essa narrativa tocou as pessoas de forma unânime.
Grandes autores da ficção também parecem seguir por esse caminho. Patrícia Melo, por exemplo, construiu uma carreira literária marcada pela denúncia à violência social. Em Mulheres Empilhadas, trata do feminicídio com repulsa e indignação. Já em Menos que Um, mergulha na desigualdade social ao retratar a violência cotidiana vivida pela população em situação de rua. Em ambas as obras, o “soco no estômago” começa já pelo título.
No streaming, The White Lotus expõe com sarcasmo o abismo entre classes sociais, o privilégio branco e a alienação de quem acha que dinheiro compra tudo, até consciência. Já em O conto de Aia, ainda que distópico, traz um incômodo real: a vigilância sobre os corpos femininos e o retrocesso nos direitos das mulheres.
A verdade é que as narrativas que emocionam, incomodam e provocam reflexão são justamente as que cumprem seu propósito. A boa ficção nos tira do lugar-comum, nos desafia a enxergar o que está velado (ou escancarado) e, muitas vezes, consegue plantar a semente da mudança.
O que mais preciso dizer:
Já está no ar o 1º episódio da série Fatos Criminais, da Rádio Defensoria de Roraima!
No programa, o jornalista Tiago Côrtes conduz entrevistas que traçam um verdadeiro raio-X do caso real da escrivã Gislayne de Deus — a mulher que prendeu o assassino do próprio pai, 25 anos após o crime.
O episódio traz detalhes sobre o processo jurídico, com falas da própria Gislayne, do advogado de defesa, da Defensoria Pública e também menciona o projeto literário que estou desenvolvendo, inspirado em sua história.
Um conteúdo poderoso, informativo e emocionante. Já disponível no Spotify. Vale muito a pena escutar!