"Tudo o que é ruim de passar é bom de contar."
#69 — O desafio de transformar histórias reais em narrativas impactantes
Tudo o que é ruim de passar é bom de contar.
E tudo o que é bom de passar é ruim de contar.
Começo a edição de hoje da Evidenciando com essa frase do único e inesquecível Ariano Suassuna. Existe um vídeo dele, bastante compartilhado nas redes sociais, em que ele solta essa pérola. Revi essa preciosidade há pouquíssimo tempo e, por sinal, quem me enviou foi Gislayne de Deus, a mulher cuja história tenho a felicidade de transformar em uma ficção policial que será publicada em 2026, pelo selo Mapa Crime.
(Se você ainda não sabe de quem estou falando, convido a conferir a última edição da Evidenciando: Ela prendeu o assassino do próprio pai)
No instante em que assisti novamente ao vídeo de Suassuna, soube que esse seria o tema desta edição. Por mais contraditório que pareça, vivências traumáticas geram excelentes histórias — mas é preciso cuidado na forma de contá-las.
Existem diferentes maneiras de retratar uma história real.
Uma delas é por meio de um estudo biográfico, autorizado ou não, em que a narrativa busca ser fiel — ou ao menos deveria ser —, focada na trajetória de uma pessoa específica, como são os trabalhos do grande biógrafo Lira Neto.
Outra forma interessante é quando o objetivo é explorar eventos e contextos, com apuração rigorosa baseada em entrevistas, documentos e investigações, resultando em um livro-reportagem, como as obras impecáveis da Daniela Arbex.
E há ainda a opção híbrida, que mistura elementos ficcionais com fatos reais. O famoso “baseado em...” — quando se recria a história de forma dramatizada, mas mantendo sua essência. Foi justamente essa a abordagem que escolhi para contar a trajetória da escrivã de Roraima.
Produções policiais baseadas em histórias reais
Seguindo a tese de que histórias ruins de viver são boas de contar, hoje trago algumas produções policiais impactantes, baseadas em histórias reais e contadas de maneira híbrida — misturando realidade e ficção sem perder a essência dos fatos.
Conviction (2010)
Onde assistir: Prime Video
Foi a produção mais recente que assisti, neste último fim de semana, por indicação da minha irmã, que compartilhou um post no Instagram sobre a resiliência de Betty Anne Waters.
Para quem não conhece, Betty Anne é uma americana cuja determinação e senso de justiça a levaram a feitos extraordinários. Em 1983, seu irmão, Kenneth Waters, foi condenado injustamente por roubo e assassinato, recebendo prisão perpétua sem liberdade condicional. Convicta da inocência dele, Betty Anne, que tinha pouca escolaridade, decidiu cursar Direito para reabrir o caso e provar sua inocência.
Após anos de dedicação e com o apoio do Innocence Project — organização que reverte condenações injustas —, Betty Anne localizou evidências de DNA que inocentaram Kenneth, após ele passar 18 anos na prisão. Sua inspiradora trajetória foi retratada no filme estrelado por Hilary Swank.
Para mim, que estou tão envolvida com a história de Gislayne de Deus, é impossível não traçar um paralelo entre essas mulheres: ambas desafiaram o sistema e as probabilidades para buscar justiça por um ente querido. São jornadas que me fazem refletir até onde alguém é capaz de ir movido pelo amor e pela verdade.
Unbelievable (2019)
Onde assistir: Netflix
Unbelievable é uma minissérie de drama criminal lançada em 2019 pela Netflix, baseada no artigo An Unbelievable Story of Rape, de T. Christian Miller e Ken Armstrong. A série narra a história real de Marie Adler, uma jovem de 18 anos que, em 2008, relatou ter sido estuprada em sua casa, no estado de Washington.
A investigação, marcada por ceticismo e pressão policial, levou Marie a retratar sua denúncia, resultando em uma acusação de falsa comunicação de crime. Anos depois, duas detetives, Karen Duvall e Grace Rasmussen, investigando agressões semelhantes no Colorado, descobriram conexões com o caso de Marie, evidenciando falhas graves na investigação inicial.
A semelhança com a história de Gislayne é clara: em ambos os casos, foi a determinação individual que superou a morosidade e as falhas institucionais. São histórias que destacam como, muitas vezes, é a coragem dos envolvidos que conduz à justiça.
O Maníaco do Parque (2024)
Onde assistir: Prime Video
A produção brasileira sobre Francisco de Assis Pereira, o “Maníaco do Parque”, surpreende pela abordagem narrativa: a série é contada a partir da perspectiva de uma repórter que não existiu, mas foi criada na ficção para ser o elo entre os fatos e o público. Essa escolha aprofundou a investigação, evitando glamorizar o criminoso.
Essa abordagem dialoga diretamente com meus valores e trabalho. Desde o início, em minhas conversas com a Gislayne, deixei claro que o fio condutor de Voz de Prisão não era o crime em si, mas a investigação que levou ao paradeiro do assassino foragido. O foco será ela, não ele, assim como foi feito nesta produção.
A Menina Que Matou os Pais / O Menino Que Matou Meus Pais / A Confissão (2021)
Onde assistir: Prime Video
Os três filmes retratam o Caso Richthofen, um dos crimes mais chocantes e bizarros do Brasil. As produções apresentam perspectivas distintas do crime: A Menina Que Matou os Pais é contado sob o ponto de vista dos irmãos Cravinhos; O Menino Que Matou Meus Pais, sob a versão de Suzane von Richthofen; e A Confissão apresenta um olhar neutro.
O bacana é que os roteiristas Raphael Montes e Ilana Casoy estruturaram o enredo com base nos depoimentos do inquérito policial, reforçando a ideia de como um crime pode ser interpretado de diferentes maneiras, dependendo de quem narra os fatos.
Essa abordagem se conecta, em parte, com o meu processo em Voz de Prisão. Também tive acesso ao inquérito policial do assassinato do pai de Gislayne. No entanto, minha intenção não é explorar diferentes pontos de vista, mas utilizar os autos do processo como um aliado essencial na construção da narrativa, trazendo autenticidade e respeito aos fatos.
Voltando à frase de Suassuna, todas essas produções abordam crimes e traumas reais. Pessoas cujas jornadas dolorosas se transformaram em histórias poderosas de superação. O grande desafio do autor está em abordar temas sensíveis com respeito e responsabilidade, preservando a dignidade das pessoas por trás dos acontecimentos.
Finalizo esta edição com um convite: se você, assim como eu, é apaixonada(o) por histórias de crime e mistério — especialmente true crime —, continue acompanhando os bastidores dessa jornada aqui na Evidenciando. E se quiser trocar impressões sobre essas produções ou indicar outras que tenham te marcado, é só me escrever!
Até a próxima edição!
Mai uma vez, amei sua newsletter, Lu. A comparação que faz com casos já acontecidos, roteirizados, filmados e como você vai caminhar com a história de Gislayne é muito intrigante e desperta o interesse pelos próximos passos. Quero acompanhar bem de perto. Tenho certeza de que sairá mais um ótimo livro. Abração.